sábado

the times they are a-changin'

http://thescarletempress.wordpress.com/
"Que não voltes mais a recear a luz e o calor do sol", "Mrs. Dalloway", pág 158

[entrada no meu caderno de desenhos/tudo e mais alguma coisa dia 31.07.09, ainda acompanhado pela Carmensita]

segunda-feira

Mãe Frida, rascunho I

Que se te fragmentou, Frida?
Quem te quebrou a coluna com os dedos?
Quem te pisoteou a carne,
Deixando-te assim, adornada
Em faixas, livre de sonhos ou medos?

Que se te fragmentou, Frida?
E que mão malvada te deformou
o rosto, Te rasgou o lábio,
Te rompeu o ventre?
Quem te desfez o corpo que o doutor não cura
Por muito que tente?

Que se te fragmentou, Frida?
As vértebras despedaçadas e escondidas,
Agrupadas em ti em arcadas de ruínas?
O teu útero seco e mutilado
Que nunca carregou o teu menino,
Apenas serve para o pecado?
O fogo de vida nos teus olhos carvão?
Ou o peito onde um dia te bateu o coração?

domingo

a queda

o pai tem cabelos brancos, disse o meu pequeno irmão, em tom jocoso, enquanto remexia tiranicamente na fina cabeleira de meu pai, demasiado entretido a ler o jornal matutino para lhe prestar atenção.
o pai tem cabelos brancos, gritava, com aquela voz de mulherzinha que as crianças possuem, enquanto a notícia me apunhalava o peito. o pai tem cabelos brancos, os primeiros, despontados após mais de meio século de vida.
seriam difíceis de esconder, dado o preto azulado do seu cabelo, preto azulado como os heróis de muitas histórias que a mãe me lia antes de ir dormir, heróis que tinham sempre o seu cabelo, a sua pele muito branca ou os seus olhos muito verdes, que todos os heróis eram os seus irmãos gémeos perdidos por esse mundo fora. e eu tinha o mais forte dos irmãos beijando-me a testa antes do adormecer.
o meu pai ganhou cabelos brancos e o meu mundo ruiu. senti-me mais uma vez pequenina e insegura, como no primeiro dia de escola, envergonhada em mim, comigo mesma, círculo interminável de palavras fazendo espiral para chegar ao eu. o cabelo branco que se juntou às entradas cada vez mais proeminentes e às rugas que já lhe surgem quando sorri.
caiu a última das fortalezas, o tempo venceu-me numa guerra que nunca quis.
o meu pai tem cabelos brancos. tufos deles, espreitando no meio do negro, ervas daninhas. o meu pai tem cabelos brancos. o tempo existe, venceu, aplica-se a ele, também a ele, até a ele. e só aí lhe noto o ar cansado de quase seis décadas, a fragilidade que não existia nele, um vaso tão frágil que temo falar-lhe mais alto com medo que a aragem das minhas palavras o parta.
hoje o meu pai não mudou só a cor do cabelo, tornou-se mortal, mortal como nunca o julguei.
o meu pai já tem cabelos brancos, repito baixinho para mim, enquanto o meu irmãozinho o grita pela casa.
um dia, quando o branco se disseminar como doença pela sua escasseante cabeleira, o meu pai morrerá. assim, como se fosse outro qualquer e não o meu pai. e eu não terei quem me beije a testa antes de dormir.

quinta-feira

S&J

três vultos no chão, em plena cidade.
ao longe o som da água que sai em repuxo da fonte
(não, não nos vamos levantar, continuemos rindo de nada).
bicicletas e skates magoam-nos os ouvidos com o seu barulho, transmitido pelo solo.
pessoas olham. amigos gozam. que estamos deitamos, os três, de mãos dadas, sentindo o chão,
rindo.
tu, ao meu lado, tão loira, tão bonita. ele, tisnado e português.
quero abraçar-vos.
três vultos abraçando o solo e o mundo é nosso. (e dos fantasmas na nossa cabeça.)
os meus caracóis varrendo o chão de um mundo que ainda nos pertence, simples.
evoco-nos.
que os fantasmas vos saem pelo corpo e eu não vos posso abraçar. (no fim, não vos abracei.)

evoco-nos, inocentes como éramos, como somos,
os três abraçando o solo perante olhares incrédulos, o sol de início de primavera acariciando-nos o rosto, magoando-nos os olhos.
os três rindo, colados ao chão.
tentando não cair.

terça-feira

King of Spain, the tallest man on earth

reinventa-me,
dá-me nome,
outro tom de pele,
outro berço.

reinventa-me

que hoje acordei sem me conhecer, o meu rosto fugiu-me quando me aproximei do espelho, os cabelos cairam-me de cansaço
de ser eu.
a minha pele ficou transparente, os meus olhos opacos, amanheci desenho inacabado.
desenha-se, traça-me delicada de ancas largas, cabelos longos, braços abertos,
tinge-me os lábios e os cabelos com o teu sangue,
renomeia-me, chama-me vida,
sopra-a ao meu ouvido, insufla-me dela.

reinventa-me
faz-me rainha de algo
(coroa-me)
apaga-me e redesenha-me
que já custa ser eu.


[sem intenções de poesia]

sábado

the tallest man on earth

Jaz aos nossos pés
O mais alto homem da terra
Cobrindo o vale com o seu corpo,
No ar vibra ainda a sua voz,
O chão treme ainda dos seus passos.

Está morto, frio
O mais alto homem da terra
Como morreu? Quem o matou?
Atacou-o a tuberculose?
Foi vítima de guerra?
Gritamos sem resposta,
Ouvindo somente os ecos das montanhas,

Riem-se os pastores em redor
Cantam pássaros pousados
em árvores em flor.

Que morreu o mais alto homem da terra
Mas ninguém o chora,
Por nenhum lado se avista dor.

O mais alto homem da terra
Não passava de um homem.

terça-feira

(Un)told Prejudices

Foda-se.
Eu.
Foda-se.
Tu.
Foda-se esta cidade
e toda a gente nela.

(E o som do piano chega,
distante)

Foda-se.
Eu.
Nós.
Foda-se esta cidade
e todos os fantasmas dela.

Foda-se, Foda-se...

(E o piano calou-se)


French Teen Idol que não me larga. Foda-se!(este bem podia ser o nome do texto)

domingo

Neotropicalismo




Ainda existe um pouco de Brazil em mim.

Sim, sim, aquele pedacinho quente e feliz,

guardado numa caixinha esquecida algures.


27 de maio, no coliseu. com grizzly bear.

Beckett ou A Falta de Identidade

Ela acorda suada a meio da noite, só na escuridão parcial do quarto. Tem um grito preso na garganta e o peito dói-lhe, como se alguém lhe estivesse apertando a grade costal.
Vemos a sua silhueta levantando-se da cama de solteiro e movendo-se lentamente pela divisão, aproveitando a pouca luz que entra pela janela da divisão. Observamos o seu corpo sentando-se algures na sombra, confundindo-se com ele.
E depois o choro, que começa suave, baixo, as primeiras lágrimas caindo no chão certamente sem alcatifa, com o seu som mudo, tloc, propagando-se pela divisão, ao qual se seguem os soluços, cada vez mais barulhentos e descoordenados, pranto que se vai intensificando à medida que as horas vão passando, até que, com o romper da manhã, cessa, já que as suas forças se esgotaram e ali está ela, no chão e despida, com a cara humedecida e os cabelos desgrenhados.
Só muito mais tarde volta a si, o seu corpo aquecido pelos raios fortes do sol que pela janela entram, conquistadores.
Esbraceja debilmente e acaba apoiando as mãos delgadas no chão, continuações dos frágeis braços, tão frágeis que quase não parecem humanos, fantasmagóricos. Com força sobre-humana ergue-se neles, rastejando ainda as pernas no soalho frio. Também estas se dobram para se erguerem agora para que possamos vislumbrar, à contraluz de início de tarde toda ela, branca e delgada, pequena, de calcanhares e joelhos salientes, cabelo desgrenhado e preto tapando-lhe o rosto que ainda nos é desconhecido, que para sempre o será, que os seus traços pelas lágrimas foram apagados, sobrando uma massa uniforme de pele onde um dia esteve o seu nariz, os seus olhos, de cor e brilho desconhecidos, ou a boca, sorridente ou apática.
Dá agora conta da sua situação, apalpando incessantemente a cara, mulher sem identidade, provavelmente não acredita no que lhe aconteceu.
Esbraceja violentamente, desesperada, e o seu corpo é sacudido por convulsões que a derrubam, provavelmente chora.
É então que ouvimos um embate seco contra o chão, o seu frágil corpo que cai desamparado após bater nos inúmeros objectos que ocupam a divisão e se vão opondo ao seu movimento, malvados.


obrigada, samuel - início de mais um conto