domingo

Beckett ou A Falta de Identidade

Ela acorda suada a meio da noite, só na escuridão parcial do quarto. Tem um grito preso na garganta e o peito dói-lhe, como se alguém lhe estivesse apertando a grade costal.
Vemos a sua silhueta levantando-se da cama de solteiro e movendo-se lentamente pela divisão, aproveitando a pouca luz que entra pela janela da divisão. Observamos o seu corpo sentando-se algures na sombra, confundindo-se com ele.
E depois o choro, que começa suave, baixo, as primeiras lágrimas caindo no chão certamente sem alcatifa, com o seu som mudo, tloc, propagando-se pela divisão, ao qual se seguem os soluços, cada vez mais barulhentos e descoordenados, pranto que se vai intensificando à medida que as horas vão passando, até que, com o romper da manhã, cessa, já que as suas forças se esgotaram e ali está ela, no chão e despida, com a cara humedecida e os cabelos desgrenhados.
Só muito mais tarde volta a si, o seu corpo aquecido pelos raios fortes do sol que pela janela entram, conquistadores.
Esbraceja debilmente e acaba apoiando as mãos delgadas no chão, continuações dos frágeis braços, tão frágeis que quase não parecem humanos, fantasmagóricos. Com força sobre-humana ergue-se neles, rastejando ainda as pernas no soalho frio. Também estas se dobram para se erguerem agora para que possamos vislumbrar, à contraluz de início de tarde toda ela, branca e delgada, pequena, de calcanhares e joelhos salientes, cabelo desgrenhado e preto tapando-lhe o rosto que ainda nos é desconhecido, que para sempre o será, que os seus traços pelas lágrimas foram apagados, sobrando uma massa uniforme de pele onde um dia esteve o seu nariz, os seus olhos, de cor e brilho desconhecidos, ou a boca, sorridente ou apática.
Dá agora conta da sua situação, apalpando incessantemente a cara, mulher sem identidade, provavelmente não acredita no que lhe aconteceu.
Esbraceja violentamente, desesperada, e o seu corpo é sacudido por convulsões que a derrubam, provavelmente chora.
É então que ouvimos um embate seco contra o chão, o seu frágil corpo que cai desamparado após bater nos inúmeros objectos que ocupam a divisão e se vão opondo ao seu movimento, malvados.


obrigada, samuel - início de mais um conto

1 comentário:

N.R. disse...

Já se sentiam saudades.