quarta-feira

On Letting Go

Ela é uma rapariga partida e vive sozinha numa casa feita de espelhos. Os seus cacos misturam-se com os cacos dos espelhos, formando amontoados cortantes que nunca ninguém varre pois só ela habita a casa.
Quando acorda somente vê ela, ainda mais partida nos degradados espelhos que revestem o pequeno quarto em que todas as noites entra para sonhar com o vazio.
O seu vestido é vermelho, tingido pelo muito sangue que jorra ao cortar-se com os seus próprios cacos, fragmentos da jarra delicada que foi um dia, numa mesa de sonho colocada, até tropeçar a cair no chão duro da realidade, ausente de tapetes ou alcatifas.
Não, ela nem sempre foi uma rapariga perdida, como nem sempre viveu numa pequena casa de vidros com um quarto de pesadelos mas agora só isso e os amontoados de cacos cortantes lhe restam, como se ela e os espelhos partidos fossem um, pequenos fragmentos da mesma peça.
Vive rodeada por si, a rapariga partida, com as suas mil facetas reflectidas nos mil espelhos que a cercam, cada dia todos um pouco mais fragmentados, eles e ela, à espera do dia em que não passarão de um amontoado de cacos no meio do nada.
Não mora na cidade, a rapariga, onde não há fragmentos mas espectros de vidas adiadas. A vida dela não foi adiada, apenas se perdeu, como quem perde um brinco ou uma caneta, deixando o fragmento de pessoa que é.
Não tem sonhos ou brilho no olhar, e já não a luz se reflecte nos espelhos embaciados da sua casa pela manhã. Não aguarda um rapaz igualmente partido, os seus fragmentos já não encaixam com os de ninguém, vai simplesmente resistindo a dias de vazio e de ela própria, ansiando por uma libertação que não chega, que os seus olhos são de vidro e não reflectem o sol.




Uma música há muito perdida dos Radiohead sobre uma rapariga que vive com um homem partido, na ressaca de anatomia, reescrita ao som de Placebo e Circa Survive, deuses!

1 comentário:

N.R. disse...

Tantos de nós que vivem em casas de espelhos.