A casa de Pedra dos meus bisavós, há muito abandonada, metade dela em ruínas, outra com portas azuis e pequenas, gastas pelo tempo e pelos bichos, com chão que range fantasmagoricamente conforme o vamos pisando, fantasma dos meus antepassados que connosco tenta comunicar, e com as paredes frias de granito, às quais me encosto para os ouvir, aos nove filhos alfabetizados e provavelmente famintos, a uma vida dura de mãos com calos, ao destino triste de nada mais conhecer senão a sua aldeia e a do marido que foi o da minha bisavó.
O tecto é novo, calculo que obra do meu avô, que agora usa o nobre e velho fantasma de pedra como lavandaria, descalabro dos descalabros!
A casa de pedra na qual o meu avô nasceu conta a história da minha vida, ainda que esta seja a primeira vez que nela entro, com dezanove anos feitos e o destino semi-traçado. A casa fala de mim ao falar da gente que nela habitou, a raça baixa e forte do meu pai, todos eles de cabelo negro, rosto angulado e trabalhador, ao qual se juntou o sangue iletrado e mesquinho da minha avó, do seu matriarcado de olhos verdes e pudor pouco, mistura pouco homogénea que gerou o meu pai, quase bastardo e quase prematuro.
Sento-me no chão de madeira podre e recuo quase setenta anos para os imaginar, para me aperceber do quanto são diferentes da raça de mestiços altos e burgueses arruinados que originaram o meu sangue materno, no quanto a miséria de uns contrastaria com as villas e as jóias de outros, nos dois sangues, o transmontano e o holandês, se é que nele há diferenças, que se fundiram e me correm ao longo de muitos metros de artérias e veias.
Pergunto-me com quais me parecerei mais e encontro-me portuguesa e da montanha, como Torga foi uma vida, sem nada dos mestiços loiros de longos pescoços. Nada além de um orgulho demasiado grande para as humildes origens do meu pai.
É inútil, conheço para saber que não sou a continuação das mulheres belas e honestas de Vera Cruz, recatadas na beleza de mestiças claras. Descendo sim das gerações de mulheres baixas e traiçoeiras, de olhos verdes enganadores que não possuo. Mulheres adúlteras, que caiam com homens no meio de bosques e campos de cultivo, camponesas iletradas cuja maior arma era a inteligência rudimentar e o sexo, parideiras de uma dúzia de filhos de pais diferentes, parindo e fornicando como cadelas, indo à missa todos os domingos, aliviando as tentações carnais do padre, no salutar e incestuoso ambiente das aldeias nortenhas.
Tudo isto a casa me transmite, não me deixando imaginar outro passado, não me deixando iludir-me com a fantasia de ser boa pessoa, fruto da genética que transporto, do verme transmontano que me contamina a doce menina que era quando me sabia loira e casta e mestiça. Herança que me arde no ventre, que me faz ciumenta e mesquinha, que me leva a tentar ser cada vez melhor e a superar-me, que busca o sucesso quando a outra quer simplesmente a cultura…
2 comentários:
Com a genética todos nascemos, mas o que deixamos que nos molde é que faz o que somos. E tu já me pareces atrasada para seguir a herança de que falas e ser má pessoa.
Eu não te ofereço consolo: sou transmontano, neto e bisneto de fascistas e lavradores biliosos; sou mestiço, porque caíu nesse granito (poroso) a água preguiçosa do índico; e felizmente nunca conheci ninguém genuinamente bom. O Nuno tem razão só até certo ponto, porque a herança física e anímica marca dolorosamente. E, sobretudo, subrepticiamente.
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